A Eternidade dos que Amaram
Autor: Marcimedes
O tempo parou, ao entardecer, prometendo que o velório seria a eternidade dos que amaram a vítima. A notícia da morte de Joisi foi uma pedrada jogada na vidraça dos sentimentos dos pais, da irmã e dos amigos do Porão 99. Ela foi atropelada por um caminhão que se evadiu do local do acidente, o que colocava todos os motoristas da cidade sob suspeita. A irmã da Joisi, uma garota linda, carinhosamente alcunhada de Pituca pela turma do Porão 99, assistiu o atropelamento. Chorava muito e dizia a todos como era culpada por não ter anotado o número da placa do veículo. Os amigos tentavam consolá-la, dizendo que o motorista logo iria comparecer à polícia. Mas os três montes de terra, jogados pela Pituca sobre o caixão da irmã, foram suas despedidas da vida social. Parou de sair nos fins-de-semana e desistiu dos estudos. A garota alegre recolheu seu sorriso do convívio humano durante muito tempo. Trancada, remexia em todos os pertences da falecida.
A primavera, dois anos depois, exatamente na data do aniversário de falecimento da Joisi, desabrochou uma nova Pituca, maquiada com cores vivas e vestida elegantemente, aparência que surpreendeu o pessoal do Porão 99. Ninguém observou que sob a máscara de maquiagem estava aprisionado o sentimento de melancolia pela morte da irmã. Todos estavam seduzidos pela sua nova aparência e queriam agradá-la. O grupo passou a ir ao cine local sempre que estreava um filme porque ela fazia questão de ir, o que detestava fazer antes da morte da irmã. Joisi era quem gostava de ser a primeira da cidade a ver um novo filme.
No verão, Pituca cortou os cabelos curtinhos e deixou uma franja caindo sobre a testa. Não lhe faltaram elogios e um deles chamou mais sua atenção - sua irmã adorava cortar o cabelo assim, bem curtinho, uma franja pendendo até os olhos. A supresa maior foi quando o Porão 99 convidou Pituca para uma excursão à praia. Ela fez questão de tomar banho de mar com o biquíni que Joisi mais gostava de usar. A mãe dizia aos amigos, sorridente, que Pituca, cortando as ondas, estava alegre como a Joisi, fazendo com que não sentisse saudade.
O outono chegou, a maquiagem de folhas das árvores passou às ruas, porém Pituca continuava a desfilar diante de todos fantasia da de Joisi.Era tudo tão divino e maravilhoso! Pituca fez plástica facial e contratou uma esteticista a quem mostrou um retrato da irmã para verificar se ficaram parecidas. A esteticista perguntou se a foto era mesmo de sua irmã porque não havia diferença entre o retrato e Pituca. Ela respondeu que, além de ter se esforçado em ficar parecida com a irmã morta, também usava as roupas que eram dela. Imediatamente, foi elogiada pelo bom gosto e pela audácia.
No inverno, mês de julho, o Porão 99 enlutou. A música do Cazuza tocou até o final na Sonata com parada automática, o livro de Machado de Assis ficou aberto sobre a cama e a identidade de Pituca foi encontrada rasgada dentro do lixo do banheiro. No quarto, restou tudo o que era de Joisi e, nas rodas do caminhão de um motorista que se evadiu do local do acidente, repousou o corpo de Pituca, parando o tempo ao entardecer, aprisionando os sentimentos da turma do Porão 99 na eternidade dos que amaram a vítima do suicídio.